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Mobilidade Reduzida

Minha vida com Boris




07.02.12 10:37

Foto: Richerla Figueredo

Os olhares dos frequentadores de uma livraria na região da Avenida Paulista, em São Paulo, se moveram para Diesel no mesmo instante em que ele entrou no espaço. Ele, um labrador de pêlo preto e quatro anos de idade, veio diretamente dos Estados Unidos para ser o óculos de Thays Martinez, 37. Ainda criança, a advogada que nasceu com a vista perfeita, sofreu uma caxumba que acabou acarretando no descolamento da retina em seus dois olhos. "Eu não tenho visão nenhuma, só tenho percepção de luz. Consigo saber se está claro ou escuro ou se tem sol ou não no dia. E minha única lembrança do tempo que enxergava são as cores", explica.  

Apesar de Diesel ser o atual e grande companheiro de Thays, foi outro cachorro que mudou a sua vida e de tantas outras pessoas. Boris, que morreu em 2009, recebeu uma homenagem por tudo que representou para a paulistana em forma de livro e também audiolivro. Minha Vida com Boris, da Editora Globo, é uma espécie de diário em que Thays passa sua vida a limpo diante de sua condição. "Hoje eu consigo falar do Boris numa boa, mas no começo foi muito difícil. Ele realmente foi um cão genial e parece que ele tinha consciência disso. O livro me ajudou muito a superar a partida dele porque consegui processar tudo o que acontecia. Quando ele se foi, vítima de tumor no coração aos 12 anos de idade, foi o pior período da minha vida", comenta.
Apesar de "dona-coruja", Thays não exagera quando fala de Boris. Mais do que um cão-guia ou um simples cachorro, o labrador caramelo foi a representação de uma mudança social.
 
Thays e Boris em um lugar muito especial para ambos: o metrô de São Paulo
O dia que durou pra sempre
Há dez anos, quando no Brasil era ainda raro se falar em cão-guia, Thays junto a sua família descobriu que em Michigan estavam treinando cães que seriam doados para pessoas de outros continentes. Sem pensar duas vezes, ela foi atrás do treinador brasileiro responsável e não demorou muito para o embarque aos Estados Unidos. Mais do que sua primeira vez fora do Brasil, era a sua primeira oportunidade de ter a chance de ir a padaria sozinha ou quem sabe ir até a esquina apenas para caminhar. Thays, que nunca se deu bem com a bengala e sempre teve a casa cheia dos caninos, via no cão-guia a chance de ter a tal liberdade que tanto almejava.

Conheceu Boris, passaram um mês juntos em treinamento e quando voltaram para o Brasil, no ano 2000, ele era um dos primeiros cães-guia do nosso País. Assim que desembarcaram por aqui, Thays já se sentia completamente segura para ser guiada por Boris. "A importância do Boris pra mim não foi para trabalhar e estudar, afinal, eu tinha me formado no colégio, fiz minha faculdade de Direito e tinha um emprego. Mas a verdade é que a vida não é feita só de grandes realizações. A vida é feita muito mais daquilo que você vive no dia a dia. E foi neste sentido que ele me trouxe muito mais alegria. Eu consegui me realizar comprando um sorvete sem ter que esperar a disponibilidade de alguém. Também pude sair da casa dos meus pais e fui morar sozinha, consegui correr no parque, caminhar à beira mar...", conta emocionada.

No primeiro dia de retorno ao trabalho pós viagem para os Estados Unidos, Thays foi impedida de entrar na estação Marechal Deodoro, linha vermelha do metrô de São Paulo. Os funcionários alegaram que animais eram proibidos naquele lugar, mesmo com ela alegando que ele era um cão-guia. "Eu tentei argumentar que naquele momento ele não era um animal, e sim um instrumento de mobilidade pra mim, mas aí eu vi que a situação não iria se resolver e preferi voltar pra casa. De lá acionei advogados, o pessoal que trabalhava comigo também se mobilizou até que o presidente do Metrô foi notificado pessoalmente, acredita?", comenta orgulhosa.
A reação de Thays e Boris foi responsável para em 2001 e e 2005 fosse implantada a lei, Estadual e Federal, respectivamente, que garante livre acesso aos cães-guia em lugares públicos. "Claro que é muito, mas muito desgastante mover uma ação. Lá se vão horas, telefonemas e até  envios de fax que eram bem comuns na época. Não dá pra gente entrar com ação contra tudo porque é muito cansativo, mas se cada um pegar uma ação judicial pra si, eu acho que a gente muda muita coisa”" posiciona a advogada que atualmente vive viajando, ao lado de Diesel, para palestrar sobre questões de inclusão e motivacionais.
Divulgação/Editora Globo
 
Vaidade no escuro
Apesar de não enxergar, Thays é fã de blogs de moda e maquiagens. Ela tem um software instalado em seu computador que lê tudo que está na tela. Um dos blogs que ela mais curte é o da Vic Ceridono. "Ela nem deve saber, mas ela faz uns vídeos que são bem acessíveis porque explica muito bem, sabe?" Pra completar, ela também faz questão de comprar roupas sozinhas e sai perguntando tudo. "Se eu vou com uma amiga o vendedor só conversa com ela e parece que eu nem estou ali", comenta.
E pelo visto, a estação Marechal Deodoro do metrô é o lugar onde tudo acontece na vida de Thays. Além ter transformado o empecilho da inacessibilidade em uma lei muito positiva, foi neste mesmo local que ela conheceu Zé, seu namorado há nove anos. "Você não vai acreditar, mas foi lá também que eu o conheci. Eu nem tinha o Boris na época e precisava comprar um bilhete e não fazia ideia de onde estava a bilheteria. Foi ótimo porque ele me ajudou de uma forma sem aquele tom de piedade", disse.
E pelo visto é com Zé, que tem a visão perfeita, que Thays pretende realizar um dos seus sonhos que é ser mãe. "Essa é uma questão que eu adio há muitos anos como toda mulher da minha geração, mas acho que seria uma experiência bem interessante", revelou. Outros sonhos de Thays são escrever um livro para criança que retrate também esta questão dos cães, ter uma casa na praia e também fazer um curso de perfume, algo que ela adora. Não temos dúvida de que Diesel e Boris, lá do céu, estarão acompanhando de perto a realização de todos esses sonhos. Como ela mesmo gosta de dizer, " a companhia de um cão 24 horas por dia é um grande prazer, é muito além de se ser só um instrumento, é também um companheiro".

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